Apesar dos repasses milionários recebidos pela ONG Missão Evangélica Caiuá, que tem sede em Dourados, o Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança não oferece o devido atendimento aos indígenas internados.
Durante visita exclusiva do Correio do Estado, ex-funcionária da unidade hospitalar que preferiu não se identificar por questões de segurança informou que já presenciou diversos casos de desassistência, negligência e falta de alimentos e de materiais de higiene para os pacientes internados no hospital.
A unidade de saúde atende as aldeias Jaguapiru e Bororó, que possuem uma população de aproximadamente 18 mil habitantes, segundo o Censo, além de outras etnias que moram em retomadas de terra na região.
A reportagem do Correio do Estado esteve presente no município de Dourados, a 229 km de Campo Grande, na quarta-feira (1º), a convite da ONG Missão Evangélica Caiuá, para uma visita ao Hospital Porta da Esperança, localizado dentro da comunidade indígena das aldeias Jaguapiru e Bororó.
Acompanhada da diretora administrativa da unidade, Rosângela Maria Andrade dos Santos, e do coordenador administrativo, Ângelo Augusto Gomes dos Santos, a equipe observou as instalações do hospital, principalmente nos setores primários de ambulatório e emergência.
A estrutura que foi apresentada à reportagem conta com farmácia, cozinha, laboratório de análises clínicas, salas de atendimento com cilindros de oxigênio e equipamento de ultrassom, além de maternidade equipada para partos.
No entanto, a equipe do jornal não teve acesso ao pavilhão onde os pacientes ficam internados por medidas de segurança hospitalar, segundo a coordenação do hospital. O local, de acordo com a Missão Caiuá, conta com os leitos que estão disponíveis conforme a demanda.
Uma das principais reclamações das fontes ouvidas pela reportagem é sobre a comida que é servida aos indígenas internados e a higiene básica oferecida aos pacientes. “Para os indígenas servem arroz, feijão e farinha.
Às vezes tem ovo, não tem um cardápio definido pensado para a necessidade de cada paciente, e quando vai uma verdura ou uma fruta, é doação do [programa] Mesa Brasil, eles não compram. Não tem roupa de hospital e sabonete para os pacientes”.
Durante a visita ao hospital, a equipe do Correio do Estado entrou na dispensa da unidade, onde havia diversos produtos alimentícios. A diretoria do Portal da Esperança informou que os produtos eram adquiridos por meio de doações das igrejas presbiterianas.
No refeitório, quando a reportagem esteva presente, justamente no horário do almoço, havia apenas uma indígena, que aparentava ser paciente, e um grupo de funcionários.
Segundo a direção do hospital, o local é utilizado apenas pelos funcionários, porém, os pacientes que estiveram aguardando por consultas dentro do hospital também podem receber a alimentação, caso queiram, no horário do almoço.
Foi mostrado para a equipe que há uma nutricionista na unidade e uma equipe de cozinheiras. No caso dos pacientes internados, o médico e o nutricionista determinam qual dieta será administrada.
Sobre os equipamentos que a reportagem viu, que a Missão Caiuá possui na unidade de emergência e no ambulatório, a ex-funcionária do hospital informou que foram adquiridos por meio de doações.
“O hospital alega para os funcionários que a Missão Caiuá não tem dinheiro, sendo que recebem verba federal, estadual e municipal. Tudo que é novo vem de emenda parlamentar de deputados ou de doações de empresas”, detalhou.
FUNCIONÁRIOS
Quando a equipe visitou o hospital, foi possível observar que havia poucos indígenas trabalhando na unidade de saúde. E a pequena parcela que atuava no local tinha funções fora da área da saúde, como na limpeza e na recepção aos pacientes.
No local, fomos informados pelo diretor Ângelo Gomes que o Hospital Porta da Esperança tem 140 funcionários, 70 deles indígenas, e que até a data da visita (quarta-feira) o hospital possuía apenas 12 internados sob supervisão médica.
Quando a reportagem perguntou sobre os funcionários indígenas para a gestão do hospital, foi informada que havia indígenas trabalhando como enfermeiros, por exemplo, porém não havia nenhum entre os principais cargos de chefia da unidade nem do conselho diretor e fiscal da Missão Evangélica Caiuá.
Em conversa com a ex-funcionária do hospital, ela declarou à reportagem que a Missão Caiuá e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) usam o hospital como “cabide de emprego para a família deles”, e que os funcionários com Ensino Superior sempre são da igreja.
“O reverendo fala que são 70 funcionários indígenas, mas quando é superior, já vem da igreja”. Ela ainda comentou sobre a diretoria que administra o hospital atualmente.
“Lá [Hospital Porta da Esperança] muda muito a gestão, a nova administração vem da Sesai, e o coordenador e a diretora são casados. Ela [Rosângela] não tem gestão hospitalar, chegou a falar em reunião que aprenderia a fazer ali”.
A fonte também declarou que o serviço para internados é bem precário. “Hoje em dia o hospital atende a população em geral do Sistema Único de Saúde [SUS], a comida é precária e os lençóis são sujos”.
LIDERANÇAS
Em entrevista exclusiva ao Correio do Estado, o coordenador administrativo do Hospital Porta da Esperança, Ângelo Gomes, declarou que o hospital tem convênio firmado com a prefeitura de Dourados, mas tem custeio acima dos subsídios recebidos.
Segundo o coordenador, o hospital recebe por mês R$ 215 mil da prefeitura de Dourados, valor que em cinco anos de contrato deve totalizar R$ 12,9 milhões em repasses.
“Fizemos várias reuniões no ano passado com os secretários de Saúde local e estadual. Hoje, o custo operacional do hospital por mês é de R$ 350 mil a R$ 400 mil, só com folha de pagamento são R$ 290 mil.
Conseguimos os recursos que faltam por meio de doações e de parcerias”, disse Ângelo ao Correio do Estado.
Atualmente, a entidade é responsável pela gestão de nove convênios nos estados do Acre, Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima. O coordenador do hospital também disse que atrasos de repasses do governo dificultaram a manutenção dos serviços aos pacientes.
“A pandemia de Covid-19, os atrasos de repasses do governo e as fake news que expõe o nome da instituição pioram a manutenção dos serviços aos nossos pacientes”, afirmou Gomes.
Vice-capitão da Aldeia Jaguapiru, Tainha, em entrevista ao Correio do Estado, falou sobre as dificuldades com atendimentos à saúde para os indígenas. “A gente teve reuniões com os diretores do hospital e da ONG.
Para nós, eles falaram que está faltando verba, que estão precisando de ajuda para custear leito, medicação, alimentação. Reclamamos para eles que os índios estão sendo mal atendidos lá”, relatou o vice-capitão da aldeia.
Tainha também comentou as notícias que ligam a entidade a possíveis desvios de dinheiro.
“A gente ficou sem entender por que faltam coisas, com tanto dinheiro que eles recebem e a gente passando necessidade. Eles falam uma coisa, mas a nossa realidade é outra”, salientou o vice-capitão da aldeia.
RECURSOS
O coordenador jurídico da Missão Caiuá, Cleberson Daniel Dutra, informou que a ONG só utiliza os recursos federais para contratação de profissionais de saúde que atendem dentro das aldeias nas regiões conveniadas e que são de responsabilidade do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI).
A entidade justificou que não pode utilizar os recursos para outras finalidades de assistência, como compra de medicamentos ou alimentos.
“No primeiro contrato com a Fundação Nacional de Saúde [Funasa], podíamos utilizar o repasse para outras finalidades de assistência à saúde indígena. Mas, a partir de 2002, o Tribunal de Contas da União [TCU] analisou os contratos dos convênios e determinou que eles só podem ter um objetivo, atendimento na atividade-fim do governo, que é o atendimento aos profissionais”, explicou.
“A atividade-meio, de transporte e insumos, é por meio dos DSEIs”, complementou Cleberson.
A Missão Evangélica Caiuá recebeu R$ 432 milhões ao longo de nove anos para atender a saúde indígena em Mato Grosso do Sul. Para todo o Brasil, a ONG de Dourados já recebeu R$ 2,9 bilhões, valor contabilizado de 2014 a 2022, por meio do Programa de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas.
Questionado sobre os valores milionários, se são suficientes ou até acima do necessário para a contração dos profissionais, Cleberson respondeu que os DSEIs que determinam se a força de trabalho de profissionais da saúde é suficiente ou se é necessário aumentar o quantitativo de funções nas aldeias onde há funcionários contratados pela ONG.
“Pode faltar pontualmente um profissional em uma área, mas nos reunimos com o governo para saber qual é a demanda que eles necessitam. Hoje em dia o valor que recebemos acredito que está dentro do que é necessário”, declarou Cleberson.
A reportagem também indagou se a Missão Caiuá alerta o governo federal sobre situações sanitárias urgentes, como falta de remédios e alimentos aos indígenas, casos parecidos com o que ocorreu com os yanomami em Roraima.
O coordenador jurídico da ONG disse que a missão fornece esse tipo de informação aos DSEIs.
“Esse contato e o diálogo são permanentes. Todo dia as comunidades ligam aqui informando, por exemplo, que faltou água ou medicamento, e assim entramos em contato com o DSEI passando essa demanda. O máximo que podemos fazer é contratar mais profissionais para atuar na aldeia que está com essa dificuldade”, finalizou Dutra.
Saiba: Procurado pela reportagem, o Ministério Público Federal em MS informou que não há investigações em curso sobre o uso de verbas federais pela ONG Missão Caiuá.
Com informações do Correio do Estado