No mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento em que, por maioria de votos (9 a 2), derrubou a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, o Senado aprovou o Projeto de Lei nº 2.903/2023, estabelecendo um limite de tempo para as demarcações no Brasil – a população indígena deverá comprovar a presença tradicional na terra demarcada na ocasião da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.
Na avaliação dos analistas políticos Tércio Albuquerque e Daniel Miranda, que foram ouvidos pelo Correio do Estado, o Congresso Nacional demorou para votar essa questão e, ao fazer isso “a toque de caixa”, ficou parecendo mais uma “pirraça” para o Supremo do que uma real preocupação com a situação dos produtores rurais e também dos povos indígenas.
Para o cientista político Tércio Albuquerque, essa é uma situação em que não se pode esquecer de apurar aspectos importantes.
“Primeiro, o papel do STF é declarar a inconstitucionalidade normativa até diante de questionamentos que envolvam a Constituição Federal. O entendimento dado pelo Supremo com relação à demarcação foi no sentido de que o marco temporal não se dá com a promulgação da Constituição Federal de 1988, mas a referência trazida na Carta Magna aborda o respeito que se deve ter às terras ocupadas pelos povos indígenas ou povos originários”, pontuou.
O analista completou que a decisão do STF não diz que só a partir de 1988 ou as terras que estavam ocupadas até essa data é que têm validade, pois não tem esse alcance de reconhecimento da questão.
“O Senado, por outro lado, votou estabelecendo o marco temporal, uma normativa que dita a regra que estabelece o critério de ocupação a partir de 1988. O que estava ocupado até 1988 muito bem, a partir daí, não”, detalhou.
Ele acrescentou que a lei aprovada pelo Senado, caso o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sancione ou vete, vai para a promulgação do Congresso.
“Ela só terá validade mais para a frente, não tendo validade de retroação, ou seja, o Senado aprovou um marco temporal considerando a Constituição de 1988, porém, só vai ter validade essa norma para aplicação se surgir algum tipo de demanda pós-vigência da lei. Antes vale a tese do Supremo, sem nenhum tipo de possibilidade de a lei retroagir no tempo para esses casos”, argumentou.
Tércio Albuquerque projeta que o projeto de lei aprovado no Senado será questionado no Supremo.
“Obviamente, se isso for levado ao Supremo, ele não vai se contradizer e vai afastar a posição do marco temporal. Então, realmente o Senado tomou uma medida fora de tempo e que não vai gerar o efeito que a Casa pretendia, que era uma regra de retorno. Para não deixar dúvidas, essa norma não gerará efeito pretérito só daqui para a frente, ou seja, ex nunc – não volta. Efeito ex tunc – a partir de agora”, afirmou.
O cientista político lembrou que, sempre que o Congresso para de fazer o que deve fazer, o Supremo é acionado para corrigir quem não tomou iniciativas próprias.
“O Supremo sempre será acionado ou motivado por alguém, por um partido político, pela sociedade civil, enfim, alguém que busca que ele dite a regra constitucional. Por isso, as coisas acontecem sempre em atraso e o Congresso tenta reagir diante de situações jurídicas já consolidadas”, analisou.
CONTRAPONTO
Já o cientista político Daniel Miranda tem dúvidas se o Congresso chegou mesmo atrasado nessa questão do marco temporal.
“Eles aprovaram em tempo extremamente curto e por maioria sólida a proposta. Se era tão ‘fácil’ aprovar, porque não o fizeram antes? Não foi, assim, atraso. O que ocorreu, na minha visão, foi o seguinte: é uma questão polêmica, portanto, difícil de se chegar a um consenso”, declarou.
Conforme Miranda, os representantes do agronegócio queriam ir além do marco temporal, invertendo os termos da questão.
“Em vez de ser uma restituição aos indígenas, os ruralistas converteram em uma espécie de restituição aos proprietários não indígenas, basta ver o esforço em aprovar a indenização”, falou.
Daniel Miranda acrescentou que, se a proposta é polêmica, porque foi aprovada tão rapidamente agora? “Porque o que o Congresso aprovou não foi tanto um marco temporal pelo marco temporal em si. Não foi mérito da proposta que foi aprovada. Tanto que o próprio relator, senador Marcos Rogério [PL-RO], disse que deixou para o Executivo vetar certos pontos que deveriam ter sido barrados na Casa de Leis, mas não o fizeram para que o projeto não voltasse para a Câmara dos Deputados”, assegurou.
O cientista político acrescentou que a pressa do Senado foi justamente para se elevar contra o STF e impor custos ao Executivo, que vai ser obrigado a vetar ou, se sancionar, ficará em uma posição muito desconfortável com sua base.
“Os advogados constitucionalistas informam que a lei nasce inconstitucional, e o Congresso sabe disso. Então, por que não fazer uma PEC [proposta de emenda à Constituição] para contornar o STF? Porque isso demoraria e, como esse projeto já estava em tramitação, foi levado adiante não por causa do marco temporal em si, que é um ganho óbvio para a bancada ruralista, mas, sim, para reagir ao STF”, concluiu.