O Consórcio Guaicurus receberá mais de R$ 32 milhões entre subsídios do poder público e benefícios fiscais somente em 2023. Apesar disso, o grupo de empresas de ônibus de Campo Grande mantém frota sucateada e é alvo de reclamações diárias de passageiros. Diante disso, vereadores iniciam pressão para que a concessionária compre veículos novos para rodar na Capital, sob risco de revogarem a isenção fiscal milionária.
Vale lembrar que o Consórcio Guaicurus não coloca novos ônibus em circulação desde 2019 e mantém frota com idade média acima da estipulada em contrato de concessão, conforme apontou perícia judicial em ação ingressada pelas próprias empresas de ônibus na Justiça.
A expectativa é de o número de novos ônibus possa chegar a 30 até o fim do ano, para dar alívio aos usuários que pagam tarifa de R$ 4,65 e que coloca Campo Grande com o 10º passe mais caro entre as capitais.
A concessão do transporte público de Campo Grande, alvo de processo na Justiça de Mato Grosso do Sul por suspeita de corrupção, foi entregue ao Consórcio Guaicurus após licitação encerrada em outubro de 2012, no “apagar das luzes” da gestão do então prefeito Nelsinho Trad (PSD).
O grupo formado pelas empresas Viação Cidade Morena, São Francisco, Jaguar Transportes Urbanos e Viação Campo Grande ganhou o direito de explorar transporte da cidade por duas décadas. O faturamento previsto à época somava a quantia bilionária de R$ 3,4 bilhões.
Precisa sinalizar com melhorias
Para o presidente da Câmara, vereador ‘Carlão’ Carlos Augusto Borges (PSB), o Consórcio deve sinalizar com melhorias na frota para continuar com a isenção do ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza). “Eles têm que fazer um sinal de que realmente vão melhorar o transporte coletivo”.
Carlão destaca que a concessionária terá 90 dias para demonstrar a melhora no transporte público. Assim, “no mês de junho, mais tardar em julho, eles têm que ter colocado ônibus novos”.
Contudo, a quantidade será definida pelo Consórcio. “Podem ser 30 [ônibus novos], podem ser 10, mas eles têm que melhorar a frota. Se não melhorar, a gente vai revogar essa lei [da isenção fiscal]”, pontua.
Por fim, afirma que “a Comissão de Transporte agora vai cobrar doído” sobre a renovação da frota. “A partir de que eles receberem agora, vamos dar um prazo para que eles comecem a trocar a frota e a prefeitura também tem que fazer isso. Então agora em abril vamos fazer uma reunião com eles, junto com a prefeitura”, adianta ao Jornal Midiamax.
Comissão pressiona por renovação da frota
O presidente da Comissão de Transporte da Câmara de Campo Grande, vereador Alírio Villasanti (União Brasil), pontua que “ficou definida a necessidade de renovação da frota, até porque muitos dos ônibus atuais estão com idade média fora do que é estabelecido no contrato”. Ele lembrou que a idade média dos ônibus de Campo Grande é de 8,7 anos.
Porém, a média prevista no contrato é de 5 anos. Ou seja, o transporte público da Capital tem 3,7 anos a mais do estipulado na concessão.
Alírio lembra que “em julho poderá ter a revogação da isenção do ISSQN. Se não tiver essa melhoria junto com a melhoria dos terminais e colocação de abrigos nos pontos de ônibus”. O vereador também afirma que não foi definido um número de ônibus novos, apenas a renovação de acordo com a necessidade.
Frota sucateada
Laudo técnico pericial realizado pela empresa Vinicius Coutinho Consultoria e Perícia, a pedido da Justiça, mostra que o descumprimento contratual relacionado à idade média dos ônibus que circulam em Campo Grande acontece desde 2015.
Como é possível conferir no infográfico abaixo, com base nas informações da empresa de perícia, a partir de 2015 a idade média ponderada dos ônibus que circulam em Campo Grande está acima dos 5 anos, que é a idade ‘limite’ prevista no contrato de concessão com o município.
O número de ônibus em circulação também ficou abaixo do permitido pelo contrato nos anos de 2018 e 2019, quando havia 565 e 552 veículos em circulação, abaixo do mínimo estabelecido em contrato de 575 ônibus. O baixo número de veículos explica os constantes atrasos e baixa frequência de ônibus passando pelos pontos, reclamação constate dos passageiros.
Ônibus velho, goteira e guarda-chuva…
A situação precária dos ônibus de Campo Grande evidenciada nas tabelas é sentida no dia a dia dos passageiros, que sofrem com veículos quebrados e até com goteiras dentro. Além disso, apesar do lucro de R$ 68 milhões que os empresários do transporte coletivo ganharam, os veículos articulados e com ar-condicionado (executivos) foram retirados de circulação.
Além da superlotação relatada diariamente pelos usuários do transporte público da Capital, dias de chuva desencadeam outras situações: goteiras e ônibus molhados.
A precariedade dos veículos utilizados pelo Consórcio Guaicurus em Campo Grande não é novidade. Basta chover, que passageiros flagram goteiras dentro dos veículos. Alguns tiveram até que utilizar guarda-chuva dentro do coletivo por conta das goteiras.
Assim como a operadora de call center Edna de Sousa Nonato, de 52 anos, que afirmou que os bancos também ficaram molhados durante o trajeto. A maior parte dos passageiros ficou em pé, tentando desviar das goteiras.
‘Velho e lotado’
Ônibus velho, superlotado e que passa apenas de hora em hora. Essa é a realidade enfrentada pelos passageiros da linha 063, em Campo Grande. A situação gera reclamação de usuários do transporte coletivo, que agora pagam R$ 4,65 pelo serviço e pedem que o Consórcio Guaicurus disponibilize mais carros nos horários de pico.
Após receber reclamações de passageiros que utilizam a linha 063 (Terminal Moreninhas x Terminal Aero Rancho), a reportagem do Jornal Midiamax embarcou no ônibus, no horário de pico, para mostrar a realidade vivida pelos usuários do transporte público.
Enquanto a estrutura do ônibus inteiro vibrava, a nossa equipe de reportagem conversou com Luciana Beltrão, de 41 anos, que estava em pé ao nosso lado. “Essa linha é lotada em horários de pico, e ele só passa de uma em uma hora e só tem um ônibus. Muita gente precisa dele porque só ele faz esse percurso por dentro dos bairros”, disse ela.
Indignada, ela também comentou sobre a relação entre qualidade oferecida pelo serviço e o custo para a população. “A gente paga caro e não tem ônibus, quando tem é lotado. De jeito nenhum o preço é justo, não temos ônibus e não temos qualidade”, exclamou Luciana.
Além disso, são constantes casos em que ônibus estragam no meio da rua e deixam passageiros ‘na mão’. Na imagem acima, veículo do Consórcio Guaicurus quebrou em plena Afonso Pena no início deste mês, causando caos e confusão no trânsito. Também, passageiros tiveram que chamar carro de aplicativo ou esperar por outro ônibus para chegarem aos destinos.
Sem resposta
O Jornal Midiamax acionou a Prefeitura de Campo Grande sobre a previsão de novos ônibus para a frota da Capital e tratativas para melhorias no transporte púbico. Contudo, por meio de nota, a administração limitou-se em dizer que “hoje o Consórcio possui uma frota de 412 ônibus que atendem as sete regiões da cidade”.
Além disso, a reportagem tentou o contato com o presidente do Consórcio Guaicurus, João Rezende, que não atendeu às ligações — devidamente documentadas -. O representante do Consórcio apenas encaminhou mensagem: ‘Desculpe, agora não posso’, e não atendeu mais as ligações.
A reportagem também procurou o advogado do Consórcio Guaicurus, André Borges, que preferiu não se manifestar sobre o assunto, informando que somente o presidente, João Rezende, poderia tratar sobre o tema.
Ciclo de isenção começou em 2013 e durou quase sete anos
Em novembro de 2013, meses após manifestações nacionais iniciadas em São Paulo após o aumento de R$ 0,20 no passe do metrô, o então prefeito Alcides Bernal (PP) sancionou a Lei Complementar 220/2013, que concedia isenção do ISS à concessionária. Na época, a prefeitura reduziu o passe de ônibus de R$ 2,75 para R$ 2,70.
A partir daí, o benefício fiscal veio sendo renovado, através das Leis Complementares 222/2013, 224/2014, 260/2015, 270/2015, 297/2017, 307/2017 e 314/2018. De lá para cá, o passe subiu de R$ 2,70 para R$ 3,95 até o fim de 2019, uma alta de 68,35%.
Em 2019, Marquinhos rompeu o ciclo e determinou a retomada da cobrança do tributo. Pela Lei Complementar 362/2019, o Consórcio Guaicurus pagaria 1,5% em 2020, 3% em 2021 e a alíquota padrão de 5% em 2022.
Consórcio paralisação greve
Apesar da retomada da cobrança, o Consórcio não recolheu regularmente o tributo e chegou a levar o caso para o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), em 2020. No ano seguinte, a dívida referente ao ISS alcançou R$ 2,7 milhões.
Campo Grande chegou ao fim de 2021 em um impasse sobre o reajuste da tarifa. Foi a partir daí que se passou a questionar as gratuidades. Como se não bastasse, os motoristas da concessionária ameaçaram entrar em greve.
Para evitar o caos no transporte, a prefeitura e o Consórcio firmaram acordo perante o MPT (Ministério Público do Trabalho) para subsidiar as empresas de ônibus sobre o passe do estudante. Além da retomar a isenção, o município passou a pagar R$ 1 milhão ao mês a título de subvenção econômica, medida regulamentada pela Lei Complementar 438/2022.
Consórcio queria tarifa a R$ 8 e recebe subsídios milionários
Como previsto no contrato de concessão do transporte público de Campo Grande, o mês de dezembro é referência para reajuste da tarifa e, em 2022, o Consórcio apresentou estudo pedindo a tarifa técnica de R$8.
Porém, com a aprovação da isenção do ISSQN e de subsídios do município e governo do Estado como forma de custear as gratuidades com o passe estudantil – que há pouco tempo eram incorporadas à tarifa -, a tarifa técnica caiu para R$ 5,15, com passe pago pelo usuário final no valor de R$ 4,65.
Então, o governo do Estado firmou repasse anual de R$ 10 milhões e o município de Campo Grande estabeleceu subsídio no valor de R$ 12 milhões. Já o valor do ‘perdão’ do ISSQN anual chega a R$ 10 milhões. Com isso, o grupo de empresas que explora o transporte coletivo da Capital terá R$ 32 milhões em recursos públicos e perdão de dívidas só em 2023.
Vale lembrar, que somente ano passado, o Consórcio também recebeu R$ 31,2 milhões, sem apresentar melhorias no serviço prestado. Somando, assim, mais de R$ 63 milhões em dois anos.
Caso a isenção seja mantida, a proposta prevê as renúncias para 2024 (R$ 11.793.309,24) e para 2025 (R$ 12.854.707,07) em recursos.
Por fim, vale lembrar que o contrato de concessão do transporte da Capital, firmado em 2012, estabeleceu a estimativa de R$ 3,4 bilhões de faturamento para as empresas que compõem o grupo durante os 20 anos de vigência do contrato.