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“A IA realmente pode ser utilizada para algumas coisas, mas não pode ser usada para tudo”, diz Karmouche

O conselheiro federal alertou que, hoje, o que alguns chamam de demanda predatória, na verdade, tornou-se uma demanda fraudulenta para enganar pessoas em situação de vulnerabilidade.

O conselheiro federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Mansour Elias Karmouche, concedeu uma entrevista exclusiva ao Correio do Estado e fez uma verdadeira análise da atuação do CNJ. Um dos temas abordados por ele foi o uso da inteligência artificial (IA) pelo Poder Judiciário.

Mansour Karmouche alertou que, no dia que for implementada uma IA para fazer absolutamente tudo no Judiciário, o ser humano terá de ser dispensado.

Outro ponto abordado pelo advogado foi o excesso de judicializações no Brasil. “Para mim, isso talvez seja hoje a grande chaga do Judiciário, que é essa demanda feita de forma fraudulenta e que nós estamos combatendo”, afirmou.

Ele também falou sobre a figura do juiz das garantias, informando que o CNJ aprovou um ato normativo para regulamentar como será feita em todo o território nacional a utilização e implementação do juiz das garantias.

O conselheiro ainda citou a questão da igualdade racial no Judiciário. Pelo levantamento que foi feito na Justiça brasileira, menos de 12% dos integrantes são ou se declaram como negros e pardos.

Como o senhor analisa a questão do alto custo do Poder Judiciário hoje no Brasil?
Veja bem, o Judiciário tem de se pagar de algum jeito. Hoje, ele tem como maior cliente os entes federativos, a União, os estados e os municípios. São os maiores clientes do Judiciário. De R$ 132 bilhões, que é o custo do Poder Judiciário, R$ 68 bilhões são arrecadados por ele mesmo, por meio das custas processuais ou de outras fontes que são geridas pelo Judiciário. Mesmo assim, esse custo é elevadíssimo, pois estamos falando de uma Justiça que não consegue entregar a contento aquilo que é proposto e precisa criar um mecanismo para diminuir essa estrutura toda, achando-se soluções alternativas, que eu acho que esse é o objetivo, e diminuir esse excesso de demanda.

Atualmente, as agências regulatórias, como a Anac [Agência Nacional de Aviação Civil] ou a ANA [Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico], não funcionam para nada, bem como as outras instituições administrativas, como os Procons [Secretarias de Orientação e Defesa do Consumidor], que acabam não tendo a eficiência necessária para evitar que a pessoa procure o Poder Judiciário.

Fora isso, também temos o excesso de demanda oriundo da área previdenciária, ou seja, o sujeito, hoje, que busca um benefício, que busca uma aposentadoria, quase é obrigado a ir para o Judiciário porque não consegue resolver administrativamente. Então, o Judiciário tem uma dívida com a nossa sociedade e, agora, tem de achar um mecanismo para solucionar o problema.

Como está a atuação da OAB junto ao CNJ?
A Ordem dos Advogados do Brasil foi uma das mentoras da criação do Conselho Nacional de Justiça há muitos anos. A OAB lutava por um órgão independente de fora do Judiciário para fazer o controle, tanto administrativo quanto financeiro e disciplinar. Por quê? Porque as corregedorias locais não davam a devida resposta a todos os questionamentos que eram feitos pelas partes, pelo cidadão, e aí se criou esse órgão externo, que foi com a Emenda nº 45.

A OAB tem um papel preponderante, não só na criação, como também na atuação do CNJ. Nós temos assento reservado no conselho e lá nos manifestamos em todos os casos, tanto nos julgamentos de interesse da nossa classe como também nos de interessa da sociedade, fazendo a defesa.

Portanto, a OAB tem um papel fundamental, como, recentemente, no caso do juiz das garantias, que é uma função exercida no inquérito policial por um magistrado como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais dos acusados no processo penal. Foi uma imensa temática, que é trazida em toda sessão e a OAB está ali para se manifestar, firmar seu posicionamento com relação a isso.

O senhor comentou que o Judiciário hoje tem um grande problema de excesso de judicialização. Então, como reduzir isso?
Bom, nós temos hoje o que alguns chamam de demanda predatória, mas, na verdade, já disse que isso não é demanda predatória, mas uma demanda fraudulenta. Alguns poucos escritórios, que hoje, inclusive, já estão sendo alcançados pela OAB, porque a Ordem faz esse controle ético-disciplinar da atuação profissional desses advogados, para que a gente possa impedir que seja feita uma má utilização, de forma fraudulenta, de pessoas em extrema vulnerabilidade, como idosos, pobres e indígenas, que estão sendo cooptadas para demandar, de forma excessiva e, talvez, ilegalmente para requerer questões que muitas vezes nem sabe se elas têm direito. E utilizam-se às vezes de uma procuração, que é replicada para outras inúmeras ações, chegando ao absurdo de ajuizaram até 40 mil ações, o que é inadmissível.

Para mim, isso talvez seja hoje a grande chaga do Judiciário, que é essa demanda feita de forma fraudulenta e que nós estamos combatendo. É difícil, mas já houve casos de prisão, inclusive dessas pessoas que estavam utilizando desse meio fraudulento, prejudicando idosos, na área previdenciária, principalmente, contra instituições bancárias, e isso é uma coisa que acaba estragando ou colocando em xeque a atuação dos advogados. Mas é uma pequena minoria que acaba estragando praticamente todo o Judiciário por conta desse tipo de procedimento.

O senhor citou o juiz das garantias. Poderia detalhar melhor a função dele?
O juiz das garantias talvez tenha sido um dos maiores avanços civilizatórios para a instrumentalização efetiva do contraditório da ampla defesa. Nós tínhamos, até pouco tempo atrás, um juiz que definia medidas cautelares, posteriormente, fazendo a instrução do processo e, depois, dando a sentença. O que aconteceu? Tanto o Congresso Nacional como o Supremo Tribunal Federal [STF] entenderam que esse primeiro contato do magistrado com cautelares pedidas pelo Ministério Público, pela autoridade policial, acabava contaminando psicologicamente aquele julgador que estaria dali para a frente para julgar esse processo. E, com isso, se criou a figura do juiz das garantias.

Agora, o CNJ aprovou um ato normativo para regulamentar como será feito em todo o território nacional a utilização e a implementação do juiz das garantias. Principalmente porque há locais e há justificativas de que não se têm condições financeiras para fazer essa implementação. Mas o CNJ está dando respostas, e eu acho que isso que é o papel mais importante do conselho, dar respostas para as questões que são de interesse de toda a sociedade.

Então, eu penso que o juiz das garantias talvez tenha sido uma das maiores, depois da audiência de custódia, conquistas da sociedade. Quem critica, não tem a noção exata da importância do juiz das garantias, principalmente para preservar a imparcialidade do julgador e para que a Justiça tenha muito mais respeito, como tem hoje na sociedade brasileira, com sua independência. Isso talvez tenha sido um grande lance que foi realmente trazido para a Justiça.

Nos últimos meses, a questão da igualdade racial no Judiciário ganhou força. Como o CNJ está tratando desse tema?
Também é um tema que vem sendo tratado com muita atenção. Teve a questão da igualdade de gênero, que foi a ascensão para as cortes brasileiras de as mulheres integrarem, por exemplo, uma lista pura de promoção por critério de merecimento. Isso foi um grande avanço que foi feito sob a gestão da ministra Rosa Weber, do STF. E agora também temos a questão da igualdade racial.

Pela radiografia que foi feita no Judiciário brasileiro, menos de 12% dos integrantes são ou se declaram, pelo sistema de autoidentificação, como negros ou pardos. Então, acho que isso é talvez uma resposta que tenha de ser dada para a sociedade, para que você tenha um Judiciário que se identifique mais com a sociedade, que seja a cara da sociedade, porque não tem como você fugir disso.

Hoje nós temos, por exemplo, o Enam, que é o Exame Nacional da Magistratura, que contempla essas questões de minorias, como os indígenas, por exemplo, fazendo com que eles possam participar de forma até diferenciada, para que você tenha um Judiciário mais identificado com a pluralidade da sociedade brasileira, sem ficar com uma característica elitista, que seja o mais identitário possível com a própria sociedade brasileira.

Em Mato Grosso do Sul, tivemos um pequeno avanço nessa questão, mas, em outros estados, isso aí se denota com muito mais intensidade. Porém, eu acredito que Mato Grosso do Sul também vai entrar na mesma linha dos outros tribunais.

Como o CNJ está vendo a chegada da inteligência artificial, tanto na advocacia quanto no Poder Judiciário?
O presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, está solicitando a todos os Tribunais de Justiça que informem quais são as inteligências artificiais que estão sendo utilizadas pelo Poder Judiciário. Por quê? Porque é dever do Poder Judiciário dar a transparência necessária para que a pessoa saiba quem é que está julgando o processo dela, se é um ser humano ou se é uma inteligência artificial.

A IA realmente pode ser utilizada para algumas coisas, mas não pode ser usada para tudo. Eu vejo com muita reserva a utilização da IA e sempre digo uma coisa que, sob o pretexto de querer corrigir uma situação, cria-se uma outra que talvez depois seja até incorrigível. No dia em que você implementar uma IA para fazer absolutamente tudo no Judiciário, você vai dispensar o ser humano e nós vamos ter, talvez, juízes robôs. Isso é bom ou é ruim? Quando você tem um ser humano analisando a conduta de outro ser humano, é uma coisa, mas, quando você tiver um robô para fazer isso, pode não dar muito certo.

Por isso, nós temos de ter muita cautela com relação à IA, pois quantos erros a gente tem visto que ela consegue cometer, então, não é infalível. Nós costumamos dizer que a falibilidade humana é que dá o grande toque de preciosidade do Poder Judiciário, ou seja, a participação humana, tanto é que você só tem recurso para os tribunais pelo grande princípio da falibilidade humana. Porque, se não fosse falível aquele que está julgando, primeiramente, você não precisaria de segunda instância, não precisaria de tribunal. Bom, o juiz robô dá a decisão e não teremos outro juiz robô para revisar, portanto, são questões profundas e tem de haver uma reflexão grande sobre isso.

As pessoas estão tendo a dimensão de que usar um robô vai resolver o problema, mas ele não vai resolver o problema. Eu penso que a IA serve para algum tipo de procedimento, para impulsionar um processo, para fazer uma movimentação ou outra, como tem sido utilizada, mas, para dar sentença, para resolver, para decidir a vida de um ser humano, eu acho que só mesmo um outro ser humano.

Correio do Estado

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